28 maio, 2009

CRÔNICA

nóva ortografia ou naum...


Gosto de palavras abertas. Por exemplo: geleia. Mas reparem: está sem acento, como se o pote estivesse sem tampa. É a nova ortografia. Acabei de ler ontem um livro cujo autor já usou as novas regras. Ele teve essa ideia..Epa, de novo sem acento. Imagine você falar para alguém a sua nova ideia sem acento. Dá a impressão de que essa ideia já nasceu morta, sem viço, sem boa colheita. Acordei esta manhã e em meu desjejum lá estava a geleia. Mas não sem acento, porque seria ridículo para mim comer geleia. Eu teria que comer geléia. Saboreei duas colheres de geléia (à moda ortográfica antiga) com queijo minas. Até agora quando escrevo vem a idéia (à moda ortográfica antiga) de repetir a dose. Estou perdendo ultimamente uns quilinhos e não quero, em conseqüência (perdoe-me colocar os tremas que também foram abolidos), ir de encontro às orientações da minha nutricionista. Mas não sou gordo, nem jogo no Coríntians, nem sou um fenômeno. Fico então tranquilo. Mas, durma-se com um barulho desse. Acabaram com o trema de tranquilo e então não sei se falo como no espanhol ou como no português. Que bom viver num país tropical e ter que adotar a linguagem dos gajos que vivem em terras distantes e frias. Mas, espere, será que frias tem acento?


Ricardo Macedo Santos

NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO

TREMA NUNCA MAIS


Em breve, o trema deixará de ser uma preocupação. Muitos já nem davam importância à sua presença. Agora é oficial, e haverá comemoração: o novo acordo ortográfico prevê seu desaparecimento. Decreta, melhor dizendo, o seu desaparecimento, a sua extinção, a sua inexistência.

Sentirei falta dele. Eu que, professor e escritor, lutei durante a vida inteira pelo trema sem temor já posso prever profundas mudanças ao nosso redor. Sem este duplo ponto, nada mais será como antes.

O qüinqüênio ficará mais curto.

O liqüidificador perderá força e eficiência.

A nota de cinqüenta reais ficará desvalorizada.

O poliglota qüinqüelíngüe não dominará tão bem os seus cinco idiomas.

Os qüiproquós estarão para sempre resolvidos.

O pingüim, perplexo, andará menos charmoso.

O antiqüíssimo se tornará banalidade sem data, velharia sem graça.

Quantas conseqüências serão esquecidas por aí, no banco de praça, dentro do táxi, no meio do caminho!

A ambigüidade menos misteriosa, menos atraente, a arte se empobrecerá.

A própria Lingüística deixará de ser aquela ciência que outrora foi.

Os ungüentos abandonados, inúteis, inócuos, nas estantes e nos dicionários.

Tudo o que era subseqüente não terá mais razão de viver.

A lingüiça sem cor e sem gosto.

A eqüidade arruinada.

A tranqüilidade perdida.

O alcagüete, envergonhado de fazer o que faz, murmura: "Sem trema... que pena!".

Ninguém mais dará crédito ao eqüestre.

Vamos rir do seqüestrador, finalmente desarmado.

Nada mais deixará seqüelas, no corpo ou na alma, no papel ou na mente.

Não haverá mais argüições, e redargüir a ninguém caberá.

Contigüidade, coisa do passado.

A delinqüência mais freqüente.

A grandiloqüência desmoralizada, sem ter o que dizer.

Meu tipo sangüíneo se esvairá.

Ninguém agüentará coisa alguma.

Deus perderá ubiqüidade.

A iniqüidade ganhará mais espaço, na rua e na mídia.

O aqüífero morrerá de sede.

O eqüidistante inalcançável.

O triângulo eqüilátero cairá no chão e se quebrará em mil pedaços.

A eqüissonância desafinará.

Como transitar pela Rodovia Anhangüera outra vez?

Os sagüis se esconderão de nós, temendo que deles arranquemos mais alguma coisa, além do trema. Aliás, o fim do trema traz à mente alguns receios. Nada impede que, daqui a algumas décadas, a cedilha seja removida sem dó nem piedade. O til também. E o circunflexo...

Desmilingüido, o trema se despede de todos. Alguns lhe dizem: "já vai tarde!". O trema estremece de medo. Abre a porta dos fundos, e some.

Gabriel Perissé é doutor em educação pela USP e escritor.